11/11/10

Brazil...

Escrevi essa crítica, mais longa do que acho necessário, sobre o Brazil, o Filme, para uma revista de cinema que nunca publicou.

Apesar da prolixidade, ficou bacaninha:

Brazil – O Filme

Se você nunca ouviu falar de Terry Gillian, peço a licença de um parágrafo para as devidas apresentações. Mas, se já conhece, sinta-se livre para pular para o terceiro parágrafo, onde (espero) tratarei do filme.

Terry Gillian é o mais jovem de um grupo de comédia inglês chamado Monty Python (se não conhece e entende um pouco de inglês, aqui: http://www.youtube.com/user/MontyPython), que até hoje é referência em humor, especialmente o non sense. Dentro do grupo, Gillian era o responsável pelas animações que serviram de interlúdio entre um scketch cômico e outro. Depois, ele se dedicou à direção de longas e construiu uma relativamente bem sucedida carreira como tal, dirigindo alguns cults como Os 12 Macacos (12 Monkeys, 1995) e Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998). Um outro fato marcante sobre Terry Gillian é que ele acha a realidade um tanto quanto chata.

Brazil – O filme (Brazil, 1985) é o segundo ‘capítulo’ de uma trilogia dedicada à fantasia. Ela começa com Os Bandidos do Tempo (Time Bandits, 1981) e termina com As Aventuras do Barão de Munchausen (The Adventures of Baron Munchausen, 1988). Mas, dos três, é Brazil – O Filme, o que está mais calcado na realidade para, dela, partir para a fantasia.

O roteiro monta uma distopia, que é, em muitos aspectos, parecida com o mundo de 1984, de George Orwel. Mas essa ‘utopia às avessas’, diferente do Grande Irmão de Orwell, não está com seu controle baseado na vigilância de uma grande entidade (Gillian faz questão de não mostrar um líder, já que não faz sentido personificar a opressão, o que nos oprime somos nós mesmos, afinal). O que mantém este mundo é a burocracia. Todos são burocratas ou têm sua vida afetada de alguma maneira por ela.

Na trama, Sam Lowry (Jonathan Pryce) encarna o típico funcionário de governo, sem vontade nem mesmo de subir de postos na carreira, recusando propostas de promoção. Sua única felicidade está em chegar em casa e sonhar, alívio único e mais do que suficiente para a enxurrada de papeis e relatórios que é seu dia a dia. Nos seus sonhos, Lowry se torna uma espécie de anjo, voando livremente pelos céus, desviando de obstáculos e chegando rápido para salvar uma bela dama que está aprisionada em uma jaula.

Tudo ia bem, ou ‘bem’ (dentro dos padrões de Lowry), até que um erro dentro do sistema faz com que ele esbarre com uma mulher idêntica a de seus sonhos. Essa visão breve de sua amada ideal é suficiente para fazer Lowry abandonar toda a sua cautela e discrição e começar a fazer de tudo para encontrar com esta moça. E por ‘de tudo’, entenda todo tipo de trapalhada que, não fosse a direção segura de Gilliam, o filme descambaria para uma comédia banal, dessas que passam à tarde na televisão.

Mas o assunto aqui é sério. A sociedade apresentada por Gilliam no filme cada vez menos parece com uma alegoria. Além da burocracia dominante, há uma apatia tão opressiva por parte dos cidadãos que chega a ser ridículo quando vemos. Na cena do ataque terrorista ao restaurante em que Lowry almoça com sua mãe, a melhor amiga da mãe e uma pretendente à noiva, o choque é muito maior pelas pessoas que seguem almoçando calmamente, que pelas mutilações vistas no fundo em segundo plano.

A mãe de Lowry, Ida Lowry (Katherine Helmond), é um espetáculo à parte. Rica, viúva e com problemas de aceitar a própria idade. Sua primeira aparição envolve um cirurgião plástico que está esticando a pele de seu rosto (com as mãos!), prendendo com grampos e depois reforçando com plástico. Como se não fosse nada de mais. E talvez não seja mesmo. Ou é algo diferente do que acontece hoje, ou mesmo nos anos 80 com o lifting facial?

Diante de todo esse mundo amarrado e louco, Gillian nos mostra duas alternativas. A primeira é o escapismo na fantasia, personificado em Lowry. Reforçado, de forma pessimista e dura ao final do filme. A segunda está encarnada na figura bonachona e divertida de Robert De Niro, fazendo uma de suas costumeiras pontas (a última foi o pirata Shakespeare em Stardust, de Matthew Vaungh).

Aqui ele é Harry Tuttle, pivô da confusão na papelada do início do filme, um conserta-tudo que vive à margem da sociedade. Ele salta (literalmente) de prédio em prédio monitorando ligações e tentando descobrir quem é que possui um problema que ele possa resolver. Sem preencher relatórios, claro. Mas essa opção possui um preço. Tanto que em determinado momento Tuttle é engolido pela burocracia que passou a vida tentando evitar.

Ainda que a descrição do inferno burocrático que é este lugar realmente o aproxime do Brasil (do nosso Brasil), este Brazil não é para ser uma alegoria de um lugar real. O nome se justifica mais pela trilha que, na maior parte do tempo, é simplesmente Aquarela do Brasil de Ary Barroso. A crítica não é ao Brasil, o país verdadeiro. Mas aos rumos que o Ocidente vinha e ainda vem tomando nos últimos anos.

Gilliam seguiu, mesmo depois de terminada sua ‘Trilogia da Fantasia’, fazendo defesas sobre as infinitas vantagens da imaginação sobre a realidade. Sejam nos filmes já citados acima, n’Os Irmãos Grimm (The Brothers Grimm, 2005), nas tentativas fracassadas de filmar Dom Quixote do Cervantes ou em seu mais recente O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (The Imaginarium of Doctor Parnassus, 2009).

O fato é que, para Gilliam, um mundo de fantasia será sempre melhor que a realidade. Ainda que exista um alto preço a se pagar para permanecer nele.

10/26/10

Woody & Stock: Sexo, Orégano e Rock´n roll

Fiquei apenas parcialmente satisfeito com esse texto. Achei ele, digamos, sem brilho. Mas como não é sobre software de contabilidade, vale o registro.

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Coisa mais datada do mundo são os hippies. Nos anos 80 foram superados pelo individualismo consumista dos Yupies, milionários antes dos 25. Hoje, conceitos como “aldeia global” e “conservação da natureza” são muito mais mercadológicos e lucrativos que parte da filosofia Paz e Amor.

Nesse ambiente contemporâneo é que Angeli (ideia original), Otto Guerra (diretor) e Rodrigo John (roteirista) criam piadas e mais piadas para o seu heróico Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock´n roll (2006).

Duplamente heróico, diga-se de passagem. Primeiro por fazer uma animação brasileira. Segundo por fazer uma animação baseada em personagens tão, digamos, excêntricos, quanto os de Angeli. Passeiam pela tela não só os últimos hippies da terra (que emprestam seu nome ao filme), mas também os Skrotinhos, Bob Cuspe, Rhalah Ricota e outros tantos personagens históricos do quadrinista. Sem contar a memorável ressurreição da falecida Rê Bordosa, na voz de Rita Lee.

Mas nem tudo são flores. Ainda que o filme tenha grandes momentos e piadas hilárias, especialmente as que exploram o anacronismo de hippies no mundo moderno (ou as sequelas deixadas pelos anos e anos de excessos), existem muitos problemas.

A falta de ritmo e timming são gritantes. Além da técnica de animação, que está anos-luz dos padrões de qualidade gringos. Mas, ei! É uma animação brasileira. Coisa para poucos. Poucos e bons.

8/23/10

Esporte...

Ando escrevendo para a Revista do Círculo Militar do Paraná. Estou fechando agora a terceira edição. Apesar de esporte, tema, em geral, árido, as vezes consigo fazer um texto que me agrade.

Este tem alguns lugares-comum, mas não é de todo mal. Tem um pouco de coração, ao menos:

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IV Torneio Círculo Militar do Paraná da Associação Paranaense de Basquetebol Máster

Do lado de fora do Ginásio Palácio de Cristal era possível ouvir os silvos produzidos pelo contato dos tênis dos jogadores com o piso da quadra. Junto a eles, os gritos de ordem, euforia ou decepção, acompanhados com os baques secos do ‘quique’ da bola. Um passante qualquer, que não soubesse, poderia pensar que se tratava de um jogo profissional, valendo medalha olímpica. E não estaria tão enganado assim.

O evento em questão era o IV Torneiro Círculo Militar do Paraná, promovido pela Associação Paranaense de Basquetebol Máster, que aconteceu entre os dias 20 e 22 de maio. Ou seja, os atletas já estão um pouco longe daquela vitalidade dos bons anos. Mas nem por isso fazem dos jogos, hoje, espetáculos menos disputados e competitivos.

Marisa Krieger, Diretora de Esportes de Alto Rendimento do Círculo Militar do Paraná, aponta algumas diferenças para os atletas mais velhos: “os jogos podem até perder em velocidade, mas o atleta, percebendo que não consegue mais correr tanto, começa a fazer um jogo mais estratégico, mais inteligente”. E é justamente o que se vê em quadra.

Tempo de casa

Muitos dos atletas que participaram da competição nas três categorias (25-44, 45-64 e acima de 65 e convidados) jogam no Círculo Militar do Paraná a muitos anos e hoje são afiliados à associação. “O Círculo tem o basquetebol veterano mais tradicional, com atletas com 30, 40 anos de casa, gente que começou com 35 e hoje está com 70 anos” diz Neli Nardi, diretor de basquetebol veterano do Círculo.

Para Narsen Paulo Castro, diretor técnico da Associação, “o movimento veterano oferece uma experiência para o jovem, para que eles não desistam e possam fugir das coisas ruins da vida”. Daí surge uma importância muito maior que o encontro de velhos amigos.

Círculo

A Associação Paranaense de Basquetebol Máster promove vários torneios em vários clubes. Mas como muitos dos atletas são tanto sócios do Círculo, quanto pertencentes à Associação, existe um clima bastante aconchegante.

Dr. José Candido Muricy, presidente da associação, começou sua vida no esporte lá no Círculo, e até hoje é um entusiasta. Muitas doações (como tabelas de vidro) para as quadras são dele, coisa que ele fala meio baixinho, quase com vergonha. O que contrasta com outros momentos, como ao dizer que o time do Círculo de sua juventude foi o melhor que já existiu, não perdia para ninguém, “mas aí eu fui chamado para o Curitibano e ganhamos do Círculo”, diz, encerrando com uma de suas ruidosas gargalhadas.

Jogos

Os times do Círculo Militar do Paraná levaram o primeiro lugar nas categorias 25-44 anos e 45-64 anos. Na categoria para maiores de 65 o vencedor foi o time do Curitibano, deixando o Graciosa para segundo lugar.

Os cestinhas foram André Catarina (25-44 anos) com 47 pontos, Roberto Gela (45-64 anos), Narsen Paulo Castro e Willians Espinarsen (maiores de 65 anos), todos com 38 pontos.

8/14/10

Eu, o crônico...

Escrevi uma crônica a pedido de uma amiga para a revista que ela escreve. A versão original, para os fins da revista, ficou meio pesada e a editora mudou um bocado. Aqui, publico a versão MACHO!

A ideia era escrever sobre as armadilhas da comunicação. Imitei o estilo do Arnaldo Branco para a Zé Pereira sem dó alguma, ainda que com resultados mais limitados:

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Os 40% que sobram

Alguém, a essa altura, já deve ter definido a comunicação como uma guerra. Se for o caso, imagino que deve ser parecido com o War, o jogo de tabuleiro: quem defende tem a vantagem do empate. Explico.

Se (e digo apenas para fins de discussão, já que não pretendo resolver a comunicação do ponto de vista acadêmico) a comunicação acontece no embate entre o que um pensou ter dito e o outro entendeu, este último tem toda a liberdade de entender o que quiser. E aí, amigo, danou-se.

Claro que nem sempre isso é uma coisa ruim. Lembro do caso de uma música do Chico (o Buarque), que o Tom (o Jobim) gostava e queria muito tocar. O Chico não sabia qual e Tom piorava a situação dizendo algo como: é aquela, da mulher despeitada, que quer o ex-marido de volta. Bem, a música era “Olhos nos olhos”, e Chico escreveu pensando na superação da mulher. O despeito foi criado na cabeça do Tom, e eu achei que a música ficou melhor assim. (Quando você me quiser rever / Já vai me encontrar refeita, pode crer / Olhos nos olhos / Quero ver o que você faz / Ao sentir que sem você eu passo bem demais)

Uma vez, uma namoradinha dos tempos de adolescência, sabendo que eu iria descambar para os lados do jornalismo, disse, empolgada, que havia lido numa revista que apenas 40% do que é dito é apreendido pelo interlocutor. O problema foi que, ao final, ela disse ‘entendeu?’, de forma retórica. O fato de eu ter respondido ‘só uns 40%’ não contribuiu para a manutenção do relacionamento. Ela não entendia piadas. Pelo menos não 100%.

As pessoas entendem o que bem querem, não importa o que você tenha dito. A única coisa a fazer é rezar para que o pouco que foi entendido, tenha sido interpretado de forma minimamente próxima às suas intenções originais.

Caso não seja, não se preocupe. Culpe a burrice ou falta de boa vontade alheia e durma feliz e em paz com a sua consciência. Você fez o seu melhor.

Aliás, convenhamos que boa vontade costuma ser o principal problema na compreensão de uma mensagem. Já vi funcionários de uma empresa que oferecia café da manhã de graça para todos reclamarem da forma diabólica como os diretores faziam para obrigá-los a chegar na hora.

E nem preciso ir tão longe. Qualquer um que tenha discutido o relacionamento (a famigerada DR) sabe do que eu estou falando. Todo e qualquer argumento será usado contra você. Naquela hora. E depois. E até uns 20 anos depois da relação ter acabado, caso você, por acaso, encontre a outra pessoa na rua. Não importa a boa intenção por trás. Não importa nada, na verdade.

A minha estratégia é pedir desculpas e culpar minha criação. O que, claro, também dá errado.

Entendeu?

7/7/10

Noturno esperando ônibus...

Escrevi este micro-conto para um concurso literário, da editora gato negro. Não fui selecionado, por isso, 'publico' aqui:

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Aconteceu de eu estar, como sempre, escorado em um ponto de ônibus. Não digo que estava ‘obviamente’ esperando um ônibus, pois isso significaria subestimar você, leitor. Eu poderia, como tantas vezes, estar esperando outra coisa, que não um ônibus. Não era o caso. Eu estava mesmo esperando um ônibus.

Era uma dessas agradáveis noites de fim de inverno em Curitiba. Sempre quis escrever uma frase destas: “Era uma dessas agradáveis noites de fim de inverno em Curitiba”. Mais por força de estilo, mas calhou de esta ser mesmo uma dessas noites.

Alguns minutos antes do ônibus chegar, eu diria 15 minutos antes, mas talvez seja menos, o tempo sempre se arrasta antes de um ônibus chegar, a menos que ele chegue na hora, ela entrou na fila.

Por “ela”, já imaginando que esteja claro para você que “ela” seja uma questão central nesse escrito (apesar de não necessariamente o ser), entenda um aglomerado de três ou quatro mulheres, ruidosas, em que ela, sim, “ela”, se destacava. Não só pelo seu ruído em particular, mas pelo olhar de altivez que caracteriza o tipo que ela encarnava.

Não conseguia entender o que ela dizia. Nem suas companheiras, que talvez fossem amigas, mas era difícil saber. Não me importou o suficiente para que eu tirasse os fones, ou desligasse a música. Ou ambos.

Nesta noite, bastou-me poder olhá-la até que um de nós dois chegasse a seu ponto. O final.

5/28/10

Valsa com Bashir

Outro texto para o Clube de Cinema. Fiquei bem satisfeito com esse.

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Começa com um cachorro. Raivoso, nos dois sentidos. A imagem da selvageria. E então mais cachorros. Uma matilha. Atravessam a cidade em crescente devastação, sem olhar para os lados, sem se incomodar com obstáculos. Até chegarem a seu objetivo. Uma janela. E latem. E latem. E Latem.

Um dos desafios da arte moderna, pensando a arte como a voz de seu tempo, era “como representar o irrepresentável, dizer o indizível?”. Uma das respostas para este dilema está em Guernica, de Pablo Picasso (1881-1973). Ali está representado ‘o horror, o horror’ do General Kurtz de Marlon Brando (1924-2004) em Apocalipse Now (1979).

Valsa com Bashir (em hebraico ואלס עם באשיר - Vals im Bashir, 2008) encara esse desafio do ponto de vista da memória. A imagem parcamente representada no primeiro parágrafo, e que abre o filme, é um sonho de um dos entrevistados, todos sobreviventes da Guerra do Líbano, de 1982. Esta cena guarda uma dupla relação com as guerra retratada no filme. De um lado, fala diretamente para a história do personagem-entrevistado: ele era o responsável por matar os cães das vilas para que estes não anunciassem a chegada dos soldados. De outro, a passagem dos cães pela cidade é como a passagem da guerra pela vida das pessoas: devastadora.

O filme combina diferentes técnicas de animação (flash, animação tradicional em 2D e 3D) para amarrar todas estas pontas conceituais. O resultado é uma forma bela e poética de descrever o horror das memórias dos entrevistados-personagens que, juntas, vão tecendo a colcha que se torna o filme. Além de ser uma forma de retratar o irretratável, buscando a infidelidade da memória e sua minuncia subjetiva, ao invés de tentar escrachar o real. Que, de real, deixou apenas as cicatrizes nos corpos e nas almas daqueles povos.

11/27/09

Outro de cinema...

Outro texto que escrevi para o Segunda tem Cinema (link para o projeto ao lado). Desta vez o filme é o ligações perigosas. Usei uma estrutura mais formal, mas resolvi abordar de frente a adaptação. O resultado:

As Ligações Perigosas

Ao longo deste ano, por conta desse projeto, tivemos que ler (ou reler) os livros referentes aos filmes apresentados. Já que trabalharíamos a questão da adaptação, era inevitável que, durante a leitura, pensássemos como seria a nossa versão desta história em filme.

Com o romance epistolar de Chorderlos de Laclos não foi diferente. E a primeira coisa que me veio a mente, já nas primeiras cartas, por conta dos prefácios, foi o formato de documentário falso. O mockumentary. O que tem haver? Já me explico.

No prefácio nos deparamos com uma primeira ressalva. O editor do livro avisa que todas aquelas cartas são ficção, fruto da mente do autor, nada além disso, e que a sociedade da época não permitiria a produção de sujeitos capazes de atos tão vilanescos. O segundo texto, de autoria assumida por Laclos, traz a afirmação oposta. Que ele simplesmente organizou e catalogou as cartas, se restringindo a um ou outro rodapé. No posfácio da edição da LP&M encontramos, ainda, a ressalva de a primeira nota do editor ter sido escrita também pelo próprio Laclos, mostrando que essa desconfiança em relação a procedência do texto pode ter sido intencional.

E enquanto minha idéia de adaptação foi o documentário falso, já que o romance de Laclos brinca com a relação entre real e ficcional, Stephen Freas, o diretor, decidiu por um filme de época. Mas por que, afinal, a escolha desse formato?

A resposta é simples: cada um usa a mesma estória para atingir objetivos distintos. O que fica claro quando se pensa o contexto de produção da época.

Laclos pretendia chocar o povo e desnudar a nobreza, classe que vivia de renda, sem outro fim que não suas vontades. Viviam como crianças grandes e mimadas, buscando, ao mesmo tempo, pecado e redenção. Aquele condenado e este vendido pela igreja católica.

Hoje (e mesmo nos anos 80, quando o filme foi produzido) não há nobreza. Mas ainda existem pessoas que não compreendem como cada ato seu afeta o mundo. Por isso o filme ganha força ao abandonar a proximidade com o real, mantendo as características de filme de época, para se tornar, então, uma alegoria do homem moderno, tão individualista que se interessa mais por si que pelo mundo que o cerca. Alegoria moralista, é importante que se saiba, já que apenas os desviantes confessos são punidos (mais duramente no livro).

E se não é possível ter acesso às mentes dos tentadores e dos tentados, como nas cartas do livro, é delicioso ver como o filme de Frears transforma, por vezes, várias páginas dessas cartas em uma única frase.

Mas não pense que algo se perde. Nos olhares de John Malkovitch e Glenn Close estão todo o veneno dissimulado do Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil, ao mesmo tempo em que existe inocência na Senhorita de Volanges da pós-adolescente Uma Thurman e devoção na Presidenta de Tourvel de Michelle Pfeiffer. E se há um porém, como sempre há, ele se chama Keanu Reeves.